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Encontros de quinta: oficinas de vídeo pela cidade

 

Encontramo-nos periodicamente, conversamos e caminhamos, nos conhecemos ao

 

longo dos percursos que fazemos pela cidade, às vezes palavras são passos, outras eles

 

que são.

 

Nosso primeiro encontro ocorre na biblioteca do Centro de Cultura Municipal Lupicínio

 

Rodrigues que fica a mais ou menos uma quadra do lugar onde moram. Era a primeira

 

vez que as meninas entravam naquele lugar. Ninguém estava à vontade. Uma das

 

meninas está grávida. Em princípio parece indiferente ao serzinho que carrega, mas à

 

medida que a conversa flui as mãos relaxam sobre a pequena esfera a formar-se.

 

Movimentos lentos e discretos percorrem a barriga e reconhecem aquele novo corpo.

 

Suas irmãs estão eufóricas com o bebê que virá. São mais jovens e vivem o momento

 

presente com alegria sincera. Contam os dias, as fraldas, brigam pelos passeios.

 

Mostram de um jeito bem particular que o futuro pode ser bom.

 

O futuro dos nossos encontros este sim, não sabíamos como seria. Precisávamos

 

construí-lo de alguma maneira, em meio a sensibilidades diferentes e linguagens

 

próprias. Quais poderiam ser nossos pontos de contato? Os relatos das meninas sobre

 

os deslocamentos que fazem cotidianamente (para visitar a avó distante, para levar o

 

irmão no posto de saúde ou o lanche para o pai na madrugada) somados às nossas

 

“vivências” de cidade, mas também por rotinas e percursos nos levaram a criar assim,

 

juntas, uma metodologia de trabalho. Ela consiste em escolher um lugar na cidade e

 

decidir como chegar nele (se de ônibus, a pé); conversar nos trajetos, registrar em

 

vídeo o que é visto, o que é falado, o que interessa, o conhecido e o desconhecido. À

 

medida que os encontros acontecem, explorar os recursos das câmeras dos telefones

 

celulares, da câmera compacta, de outra com mais recursos e por fim, de uma câmera

 

profissional.

 

A conversa agor flui. À medida que caminhamos vamos nos “derramando” sobre os

 

caminhos que fazemos e preenchendo a cidade com falas e risos e alguns olhares

 

marejados.

 

O primeiro dia de passeio em conjunto é feito no ônibus turístico de Porto Alegre. A

 

sugestão é nossa. O trajeto é marcado pelo parque que as seis mulheres não

 

frequentam, por uma rua que nunca passaram e um museu que gostariam de visitar.

 

Essa Porto Alegre nos é conhecida. Vamos por ela frequentemente e de tanto vê-la,

 

talvez tenhamos perdido a curiosidade em redescobri-la. Convidamos as meninas a

 

irem conosco por ali. O ônibus turístico é escolha reveladora da vontade de termos

 

ainda um outro olho que mira a cidade do alto, de um veículo em trânsito que mostra

 

o que uma certa concepção de cidade entende como importante mostrar em Porto

 

Alegre. A cidade que se quer mostrar ao que não a habita. O ônibus não passa pela vila

 

das meninas, tampouco pelo edifício no qual trabalhamos e estudamos.

 

Supostamente, não há nada de interessante para que o olhar de um visitante se

 

detenha nestes lugares. E, no entanto, durante o percurso, a antiga fábrica da cerveja

 

Brahma, onde hoje funciona um shopping, e o Parque Moinhos de Vento, o “Parcão”

 

chamam a sua atenção; embora soubessem da existência dos dois lugares, não

 

conheciam nem imaginavam que pudessem ser tão interessantes, especialmente

 

vistos do alto. Na Praça da Matriz, surpreendem-se com a deusa da Justiça Themis na

 

fachada do Palácio da Justiça. Esta deusa Themis do palácio, ao contrário de muitas

 

representações suas de olhos vendados e portando uma balança, tem os olhos abertos

 

e segura uma espada nas mãos. Do alto da fachada, parece observar o que se passa no

 

entorno. Perguntamo-nos como é possível que nunca tenhamos percebido tais

 

“detalhes” nas tantas vezes que neste local estivemos.

 

As meninas já tinham andado no ônibus turístico, quando eram bem pequenas, dizem.

 

Falamos sobre viagens. Elas querem viajar. O pai de uma prometeu levá-la à Gramado,

 

cidade que dista 120km de Porto Alegre, mas ela não acredita que seja logo, pois o pai

 

está desempregado. A outra conhece a Bahia. Foi com a mãe e as irmãs. Acha o povo

 

de lá simpático e as mulheres feias. As meninas que estão neste ônibus turístico se

 

acham bonitas?

 

No segundo dia de encontro vamos ao Parque Farroupilha. Entramos no parque pelo

 

Monumento ao Expedicionário, arco em homenajem aos pracinhas que lutaram na II

 

Guerra Mundial. O parque é conhecido popularmente como Redenção. A partir dali,

 

andamos sem um rumo específico e deixamos o acaso determinar os caminhos a

 

serem traçados durante os percursos. A errância que para nós é uma metodologia

 

incorporada em nossas práticas de trabalho, passa a ser para as meninas uma

 

possibilidade de sair de casa, do ambiente doméstico no qual estão sempre

 

desempenhando uma função. Dispomos de tempo e, portanto, andamos devagar.

 

Com a câmera sempre ligada, filmamos e conversamos incessantemente. Tudo é

 

motivo para comentário, a poça d´água, o recanto oriental, a estátua do Buda. As

 

imagens durante quase todo o tempo coincidem com a audiodescrição – exceto pelo

 

estado de espírito que emerge espontâneo e que a câmera mal consegue enquadrar: o

 

momento em que uma delas avista um trenzinho que circula pelo parque. Sua fala

 

sinaliza o espanto que somente o ineditismo de um primeiro contato pode gerar.

 

Em outro dia vamos ao Centro de Saúde, o “Postão”. O percurso surge ao acaso, é um

 

dos poucos dias que todas meninas aparecem no nosso ponto de encontro habitual,

 

mas Carol avisa que não poderá nos acompanhar - por conta da gravidez, tem consulta

 

marcada em seguida. Olhamos no relógio, restam ainda quarenta minutos durante os

 

quais propomos acompanhá-la neste trajeto. Chegamos no Centro de Saúde em

 

tempo, Carol está sorridente, a câmera em punho meio enviesada segue capturando

 

suas impressões. Perguntamos como foi a experiência da caminhada, que sensações

 

vieram à tona. Elas nos conta que (re)fazer este percurso supostamente já conhecido -

 

mais lenta e atentamente - por onde outras tantas vezes teve de percorrer com pressa

 

para ser atendida, faz com que analise mais as coisas, algo a que não estava habituada.

 

O grupo que vai na frente conversa sobre sexo e gravidez, somos três, as duas

 

adolescentes já tem 18 anos. Uma conta que a outra é uma grande amiga. É aquela

 

que aconselha. Sempre sabe o que dizer. Sabe que não quer engravidar jovem. Que

 

para ter um filho é preciso ter um emprego, uma casa só dela. Conta que procurou um

 

médico no posto para tomar anticoncepcional antes da primeira relação e que volta a

 

cada três meses ao posto de saúde. Conforme combinado vamos filmando tudo que

 

queremos, que nos chama atenção, que descobrimos. Em um momento somos

 

confundidas com turistas. Falam em inglês conosco, acenam.

 

Estamos curiosas para usar a câmera profissional, mas temos receio de sair passeando

 

pela cidade com algo que chama tanta atenção. Escolhemos então conhecer o Vila

 

Flores, um centro de cultura e negócios localizado no chamado 4 distrito de porto

 

alegre. Fomos de carro até lá, conversando sobre música, sobre o lugar e sobre as

 

pessoas que iríamos conhecer, sobre automóveis.

 

Quais os referenciais das meninas? É o que buscamos descobrir. Também ver se as

 

perguntas que formulamos em relação à cidade ou como a vivemos tem pontos de

 

contato.

 

Nós ignoramos qual é a Porto Alegre das meninas. Elas ignoram qual é nossa Porto

 

Alegre.

 

Que tipo de encontro é possível com alguém que tem diferentes referenciais de

 

cidade? Qual a cidade que nós mostramos? Como nos mostramos na cidade? Como a

 

cidade se mostra para nós? Foi para nos aproximarmos destas perguntas que nasceu o

 

desejo de percorrermos conjuntamente alguns lugares de Porto Alegre e gravar em

 

vídeo estes percursos. Conversamos ao caminhar; também silenciamos. Através dos

 

vídeos vamos descobrindo uma cidade que nos é muito próxima, mas que se torna

 

diferente pelo olhar e ritmo do andar do outro. Há um olhar de curiosidade, de

 

descoberta de uma metrópole que tem seu mapa, seus percursos ligados também a

 

uma condição social, cultural. Percebemos que uma mobilidade diretamente

 

relacionada a recursos econômicos (se vamos de ônibus, a pé, de carro) determina

 

uma visão, uma apreensão e uma vivência da cidade.

 

Eventualmente, pedimos que as meninas nos contem como foi a experiência daquele

 

dia, que sensações vieram à tona. Elas nos dizem que (re)fazer estes percursos, alguns

 

deles supostamente já conhecidos - mais lenta e atentamente - por onde outras vezes

 

tiveram de percorrer com pressa para ir ao posto de saúde ou resolver questões

 

burocráticas no centro da cidade, faz com que analisem mais as coisas, algo que não

 

estavam habituadas. E aqui encontramos pontos de contato entre todas nós, pois não

 

ter muito tempo para nos determos para observar nosso cotidiano, o que já faz parte

 

de nossa vida como algo automático, é algo que partilhamos. Prestar atenção ao que é

 

considerado banal (nossos deslocamentos pela cidade, seus sons, ruídos, recantos,

 

cheiros, luzes e sombras) torna-se cada vez mais raro. E é isto o que um encontro

 

como este que ocorre entre pessoas provenientes de contextos diferentes oportuniza:

 

ao parar para olhar e escutar como o outro se relaciona com a cidade em seu

 

cotidiano, descobrimos que uma cidade é feita de muitas cidades, muitas vezes

 

imprevisíveis, inesperadas. Novas associações entre o que constitui o urbano são feitas

 

a partir de um olhar e de uma escuta renovadas e vemos que uma cidade nunca é

 

somente a nossa cidade.

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